terça-feira, 23 de agosto de 2016

A universidade em mim

Cada um tem os seus processos. Todo mundo sabe que eu defendi a tese em abril deste ano (que, por tanta coisa que já aconteceu, parece ter acontecido há anos!), já está até no repositório, mas, até hoje, não tinha enfrentado totalmente a burocracia da UnB para a expedição do diploma. Isso incluiria o pagamento da multa da BCE, mais carimbos de “nada consta” na SGP, SAA, SXPTO e o protocolo final na Reitoria.

Para isso, tive que andar por boa parte do campus Darcy Ribeiro. Fui à biblioteca, ao ICC, ao Banco do Brasil, voltei à biblioteca, depois fui à Reitoria, voltei à biblioteca de novo (faltou o xerox do RG!!), e fui finalmente à Reitoria.

Descrever o caminho, assim, parece muito penoso. Porém, o que me inspirou durante todo o caminho foram os ipês brancos que floresceram por lá. Eu me lembro da primeira vez que os encontrei: em 2010, entre o Mestrado e o Doutorado, quando enfrentei um momento muito difícil na minha vida. Meio perdida, precisando de um tempo para respirar, pensei que precisava estar em um lugar de que gostasse muito: a primeira imagem que me veio à cabeça foi da UnB. Fui para lá e vi os ipês brancos, majestosos, querendo me dizer que tudo daria certo. E deu.

UnB. Essa universidade sempre me foi atraente... quando cheguei a Brasília, não demorei a pegar um ônibus, num sábado à tarde, para conhecer a Biblioteca. Hoje, descendo as escadas do “Café das Letras” rumo ao ICC, eu me lembrei da primeira vez em que pisei lá: um misto de sensações me tomou aquele dia: eu me sentia perdida e ao mesmo tempo “achada”. Fiquei encantada de ver o movimento de pessoas estudando num sábado à tarde. Lembro que peguei um montão de livros de Penal para ler, me perdi (deliciosamente) entre os corredores do subsolo da biblioteca, para conhecer o acervo, tirei cópias de algumas obras muito legais. Eu me senti em paz ali, desde a primeira vez.

Na UnB tem vento seco e fresco, pessoas transitando, às vezes apressadas, às vezes lentas, mas sempre conversando atentas umas às outras. As pessoas se conhecem e se reconhecem no campus. Ao longo dos 9 anos de UnB, é incrível perceber a sua mudança: a universidade está mais preta, mais colorida, mais livre. É claro que ainda não é a universidade perfeita (ainda há muitos casos de racismo e de machismo, o calor da BCE em algumas épocas do ano, as goteiras nas salas de aula...), mas é muito melhor do que a que encontrei em 2007.






A gente não tem "formatura" no Mestrado e no Doutorado, então alguns rituais de passagem precisam ser criados para a gente entender que uma fase terminou. Os ipês brancos me inspiraram a inventar, hoje, o meu ritual de despedida: inventei o fim do doutorado, passeando com prazer pelos meus lugares preferidos da UnB. Então, fui com prazer da biblioteca até o ICC, do ICC até o Banco do Brasil, passando pela livraria da UnB (o livro do Fairclough que eu comprei lá, ainda meio ressabiada sobre análise de discurso, tem uma nova edição bem bacana!), depois voltei ao ICC; parei um pouquinho ali, observando as pessoas, a atmosfera. O cheiro de café/xerox e poeira. O colorido do caminho.

Parei de novo para namorar os ipês brancos. Passei também pelas árvores no caminho da Reitoria, onde pratiquei yoga na fase final da tese. E desci ao subsolo da biblioteca, passeei pelos livros, parei na cafeteria e tomei uma Coca-Cola de garrafa bem gelada, como nos dias quentes da tese eu fazia. E encontrei uma amiga querida, que dividiu alguns dos últimos passos da tese comigo.







Protocolei o pedido na reitoria sorrindo. Fui muito feliz nesses 9 anos. Não é uma despedida da UnB – não dá para se despedir daquilo que te pertence, daquela a quem você pertence. Eu precisava desse tempo para entender que a UnB está em mim, e os ipês, espero, florescerão todos os anos, para encontrá-los quando quiser.


segunda-feira, 13 de junho de 2016

Fala para a Audiência Pública – “O crime de estupro no Brasil”


Resolvi ressuscitar o blog para incluir, aqui, textos, crônicas, falas públicas e outros pequenos textos. Sejam bem-vindxs de volta!

Hoje tive a satisfação de participar da audiência pública da Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal sobre o crime de estupro no Brasil, dividindo a mesa com mulheres que proporcionaram um debate muitíssimo qualificado. A notícia abaixo resume bem o que foi falado, mas não o que foi sentido: em tempos difíceis, é sempre bom saber que há alguns espaços que permitem a abertura às mulheres, para a defesa de direitos humanos e para a discussão qualificada sobre as políticas públicas fundamentais para o empoderamento das mulheres. Fiquei muito feliz em poder ir e dar meus vinte centavos para que a discussão ultrapasse os limites do Direito Penal.





Bom dia a todas e a todos. Em primeiro lugar, agradeço o convite formulado pelo Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, Senador Paulo Paim, e cumprimento todas as mulheres que compõe a mesa para esta audiência pública, assim como todas as pessoas aqui presentes.

Considerando a composição da mesa, acho apenas necessário indicar que as relações entre Gênero e Direito estão entre os meus mais recentes objetos de pesquisa. Considero que é impossível não realizar um recorte de gênero e de raça para a discussão de uma série de assuntos no âmbito do Direito Penal. No caso do objeto da nossa audiência pública, o crime de estupro, trata-se de recorte ESSENCIAL. Porém, como há muitas pesquisadoras feministas nesta mesa, não abordarei a questão do crime de estupro diretamente com este recorte, mas quero deixar claro que a luta pela igualdade de gênero é fundamental para que possamos pensar em alternativas para a diminuição dos índices de crimes de estupro no Brasil.

Além disso, considerando os meus interesses de pesquisa, a discussão, no âmbito do Poder Legislativo, sobre o que se considera relevante para o debate penal e o que não se considera, é fundamental. No Legislativo, um aspecto a que sempre se recorre quando há algum caso de grande projeção em nossas mídias ou em nossa sociedade é o aumento das penas para determinado crime. 

No caso do estupro, a recente aprovação do PLS 618/2015 – que criou o tipo penal de “divulgação de cena de estupro” e uma causa de aumento de pena para o estupro coletivo é um desses resultados, que expressaram a resposta mais rápida possível a um problema cuja complexidade está longe de ser explicada apenas por meio de uma lei penal.

O populismo penal – exatamente como se chama este movimento de expansão das leis penais a partir de episódios que demandem uma ação rápida do Estado – é muito sedutor e percebido em muitos países do mundo. O Direito Penal contém uma perigosa inserção no inconsciente coletivo e, por meio de sua movimentação – notadamente de sua ampliação –, o senso comum tende a achar que a sociedade “está mais segura” quando as penas para quaisquer crimes são aumentadas. Trata-se de uma das muitas falácias atribuídas ao Direito Penal.

Tivemos mudanças significativas na legislação penal referente ao crime de estupro em 2009, com a aprovação da Lei 12.015, fruto de discussões de uma Comissão Mista de Inquérito, conduzida pela Senadora Rita Camata. Após o advento da Lei 12.015, as penas atualmente dispostas no Código Penal para o crime de estupro no art. 213 do CP e no art. 217-A do CP são altas – mínimo de 6 anos, no caso do caput do 213, até 30 anos (quando houver resultado morte, no caso do art. 213, §2º e do art. 217-A, §4º). O problema, no caso dos crimes de estupro no Brasil, não são as penas baixas.

As penas mínimas foram aumentadas, as condutas se tornaram mais complexas. Porém, qual foi o impacto desta legislação em relação à conduta de homens (o crime de estupro é praticado predominantemente por homens no Brasil)?

Segundo o próprio Senado Federal, quando noticiou a aprovação do PLS 618/2015, de acordo com uma pesquisa realizada, no ano passado, pelo Datafolha, 90% das mulheres entre 16 e 24 anos afirmam ter medo de sofrer violência sexual. E segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2014, o Brasil tinha um caso de estupro notificado a cada 11 minutos: foram 47.646 estupros registrados no Brasil em 2015. Em média, apenas 35% dos casos são representados ou notificados à polícia, e, portanto, 65% dos crimes sexuais no Brasil permanecem sem investigação.


O Direito Penal possui respostas muito restritas: em primeiro lugar, sua natureza não permite a solução do conflito. O Direito Penal nunca prometeu isso. O Direito Penal concentra as suas atenções no autor ou na autora do crime, enquanto que o Processo Penal fornece meios /meios de prova que, numa (re)construção da narrativa, o réu possa ser absolvido ou condenado, e que todos os seus direitos fundamentais seja, respeitados. Quanto à vítima, esta só é necessária para o início da investigação de determinados crimes – como é o caso do art. 213 do Código Penal – estupro de pessoas maiores de 18 anos e não consideradas vulneráveis -, pois, nesse caso, a ação penal só é processada mediante representação da vítima. Após a representação, a vítima pode acompanhar o caso, se assim quiser, e poderá ser ouvida, se o juiz quiser, na produção da prova processual chamada “declarações do ofendido”. Em casos de crimes contra a dignidade sexual, o Superior Tribunal de Justiça possui posicionamento unânime, desde 2009, no sentido de que a palavra da vítima possui alto valor probatório nas investigações de crimes de estupro – por todos, cito recente Habeas Corpus julgado pelo Ministro Ribeiro Dantas, na 5ª Turma do STJ (HC 290.361/SP, DJE 26/04/2016).

Portanto, as estratégias para se pensar em formas de evitar a prática do crime de estupro no Brasil não passam, atualmente, pela alteração ao Código Penal, e sim de ajustes às formas de visibilização destes crimes e de políticas de segurança pública que reforcem a ocupação do espaço público por mulheres, além de políticas públicas de empoderamento de mulheres. Segundo o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2015, 90,2% das mulheres e 73,7% dos jovens entre 16 e 24 anos têm medo de sofrer violência sexual.


Recentemente, defendi minha tese de Doutorado na Universidade de Brasília, defendendo a criação de um Estudo de Impacto Legislativo para que, antes da aprovação de qualquer norma penal ou processual penal que implique na criação de novos tipos penais ou em alterações processuais significativas, todas as pessoas e as entidades interessadas possam ser ouvidas e trazer suas contribuições ao debate. Dentre as perguntas formuladas nesse meu estudo, apresento, aqui, algumas:



1.      O que é o problema?
2.      O assunto do problema é pertinente ao Direito Penal?
3.      O problema deve promover a alteração do Código Penal ou de alguma outra lei penal específica?
4.      A proposição afeta os princípios do direito penal?
5.      Quais são os objetivos da proposição legislativa?
6.      Quais são as opções para alcançar os objetivos da proposição legislativa?
7.      A proposição legislativa foi elaborada seguindo critérios objetivos de uma determinada política criminal? Pode-se identificar a política criminal orientadora da proposta?
8.      O objeto da proposição legislativa será avaliado? Como? Por quem?
9.      As alterações propostas foram baseadas em dados? Em caso positivo, citá-los.
10.  As alterações propostas provocarão efeitos na estrutura do sistema de justiça criminal ou no sistema penitenciário brasileiro? Em caso positivo, quais?
11.  As partes interessadas/afetadas foram ouvidas no curso da discussão das propostas legislativas? Quais foram as suas contribuições para a análise da proposição?


Nesse sentido, para que o Senado possa contribuir efetivamente para a mudança de cenário das estatísticas aqui apresentadas – e, principalmente, para evitar a prática de novos crimes contra a dignidade sexual -, a resposta passa mais pela análise e pelo monitoramento dos dados, no sentido de promover as políticas públicas adequadas para o empoderamento das mulheres, do que pela alteração da legislação penal. O Observatório da Mulher contra a Violência, instalado em março no Senado Federal, me parece um locus bastante adequado para o desenvolvimento de reflexões no sentido do aprimoramento da investigação criminal dos casos de estupro que chegam ao conhecimento do sistema de justiça criminal e de políticas públicas voltadas à prevenção destes crimes, focadas, principalmente, no empoderamento de mulheres.


Fico à disposição de todas e de todos para sanar dúvidas e prestar maiores esclarecimentos. Muito obrigada.