terça-feira, 23 de agosto de 2016

A universidade em mim

Cada um tem os seus processos. Todo mundo sabe que eu defendi a tese em abril deste ano (que, por tanta coisa que já aconteceu, parece ter acontecido há anos!), já está até no repositório, mas, até hoje, não tinha enfrentado totalmente a burocracia da UnB para a expedição do diploma. Isso incluiria o pagamento da multa da BCE, mais carimbos de “nada consta” na SGP, SAA, SXPTO e o protocolo final na Reitoria.

Para isso, tive que andar por boa parte do campus Darcy Ribeiro. Fui à biblioteca, ao ICC, ao Banco do Brasil, voltei à biblioteca, depois fui à Reitoria, voltei à biblioteca de novo (faltou o xerox do RG!!), e fui finalmente à Reitoria.

Descrever o caminho, assim, parece muito penoso. Porém, o que me inspirou durante todo o caminho foram os ipês brancos que floresceram por lá. Eu me lembro da primeira vez que os encontrei: em 2010, entre o Mestrado e o Doutorado, quando enfrentei um momento muito difícil na minha vida. Meio perdida, precisando de um tempo para respirar, pensei que precisava estar em um lugar de que gostasse muito: a primeira imagem que me veio à cabeça foi da UnB. Fui para lá e vi os ipês brancos, majestosos, querendo me dizer que tudo daria certo. E deu.

UnB. Essa universidade sempre me foi atraente... quando cheguei a Brasília, não demorei a pegar um ônibus, num sábado à tarde, para conhecer a Biblioteca. Hoje, descendo as escadas do “Café das Letras” rumo ao ICC, eu me lembrei da primeira vez em que pisei lá: um misto de sensações me tomou aquele dia: eu me sentia perdida e ao mesmo tempo “achada”. Fiquei encantada de ver o movimento de pessoas estudando num sábado à tarde. Lembro que peguei um montão de livros de Penal para ler, me perdi (deliciosamente) entre os corredores do subsolo da biblioteca, para conhecer o acervo, tirei cópias de algumas obras muito legais. Eu me senti em paz ali, desde a primeira vez.

Na UnB tem vento seco e fresco, pessoas transitando, às vezes apressadas, às vezes lentas, mas sempre conversando atentas umas às outras. As pessoas se conhecem e se reconhecem no campus. Ao longo dos 9 anos de UnB, é incrível perceber a sua mudança: a universidade está mais preta, mais colorida, mais livre. É claro que ainda não é a universidade perfeita (ainda há muitos casos de racismo e de machismo, o calor da BCE em algumas épocas do ano, as goteiras nas salas de aula...), mas é muito melhor do que a que encontrei em 2007.






A gente não tem "formatura" no Mestrado e no Doutorado, então alguns rituais de passagem precisam ser criados para a gente entender que uma fase terminou. Os ipês brancos me inspiraram a inventar, hoje, o meu ritual de despedida: inventei o fim do doutorado, passeando com prazer pelos meus lugares preferidos da UnB. Então, fui com prazer da biblioteca até o ICC, do ICC até o Banco do Brasil, passando pela livraria da UnB (o livro do Fairclough que eu comprei lá, ainda meio ressabiada sobre análise de discurso, tem uma nova edição bem bacana!), depois voltei ao ICC; parei um pouquinho ali, observando as pessoas, a atmosfera. O cheiro de café/xerox e poeira. O colorido do caminho.

Parei de novo para namorar os ipês brancos. Passei também pelas árvores no caminho da Reitoria, onde pratiquei yoga na fase final da tese. E desci ao subsolo da biblioteca, passeei pelos livros, parei na cafeteria e tomei uma Coca-Cola de garrafa bem gelada, como nos dias quentes da tese eu fazia. E encontrei uma amiga querida, que dividiu alguns dos últimos passos da tese comigo.







Protocolei o pedido na reitoria sorrindo. Fui muito feliz nesses 9 anos. Não é uma despedida da UnB – não dá para se despedir daquilo que te pertence, daquela a quem você pertence. Eu precisava desse tempo para entender que a UnB está em mim, e os ipês, espero, florescerão todos os anos, para encontrá-los quando quiser.


segunda-feira, 13 de junho de 2016

Fala para a Audiência Pública – “O crime de estupro no Brasil”


Resolvi ressuscitar o blog para incluir, aqui, textos, crônicas, falas públicas e outros pequenos textos. Sejam bem-vindxs de volta!

Hoje tive a satisfação de participar da audiência pública da Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal sobre o crime de estupro no Brasil, dividindo a mesa com mulheres que proporcionaram um debate muitíssimo qualificado. A notícia abaixo resume bem o que foi falado, mas não o que foi sentido: em tempos difíceis, é sempre bom saber que há alguns espaços que permitem a abertura às mulheres, para a defesa de direitos humanos e para a discussão qualificada sobre as políticas públicas fundamentais para o empoderamento das mulheres. Fiquei muito feliz em poder ir e dar meus vinte centavos para que a discussão ultrapasse os limites do Direito Penal.





Bom dia a todas e a todos. Em primeiro lugar, agradeço o convite formulado pelo Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, Senador Paulo Paim, e cumprimento todas as mulheres que compõe a mesa para esta audiência pública, assim como todas as pessoas aqui presentes.

Considerando a composição da mesa, acho apenas necessário indicar que as relações entre Gênero e Direito estão entre os meus mais recentes objetos de pesquisa. Considero que é impossível não realizar um recorte de gênero e de raça para a discussão de uma série de assuntos no âmbito do Direito Penal. No caso do objeto da nossa audiência pública, o crime de estupro, trata-se de recorte ESSENCIAL. Porém, como há muitas pesquisadoras feministas nesta mesa, não abordarei a questão do crime de estupro diretamente com este recorte, mas quero deixar claro que a luta pela igualdade de gênero é fundamental para que possamos pensar em alternativas para a diminuição dos índices de crimes de estupro no Brasil.

Além disso, considerando os meus interesses de pesquisa, a discussão, no âmbito do Poder Legislativo, sobre o que se considera relevante para o debate penal e o que não se considera, é fundamental. No Legislativo, um aspecto a que sempre se recorre quando há algum caso de grande projeção em nossas mídias ou em nossa sociedade é o aumento das penas para determinado crime. 

No caso do estupro, a recente aprovação do PLS 618/2015 – que criou o tipo penal de “divulgação de cena de estupro” e uma causa de aumento de pena para o estupro coletivo é um desses resultados, que expressaram a resposta mais rápida possível a um problema cuja complexidade está longe de ser explicada apenas por meio de uma lei penal.

O populismo penal – exatamente como se chama este movimento de expansão das leis penais a partir de episódios que demandem uma ação rápida do Estado – é muito sedutor e percebido em muitos países do mundo. O Direito Penal contém uma perigosa inserção no inconsciente coletivo e, por meio de sua movimentação – notadamente de sua ampliação –, o senso comum tende a achar que a sociedade “está mais segura” quando as penas para quaisquer crimes são aumentadas. Trata-se de uma das muitas falácias atribuídas ao Direito Penal.

Tivemos mudanças significativas na legislação penal referente ao crime de estupro em 2009, com a aprovação da Lei 12.015, fruto de discussões de uma Comissão Mista de Inquérito, conduzida pela Senadora Rita Camata. Após o advento da Lei 12.015, as penas atualmente dispostas no Código Penal para o crime de estupro no art. 213 do CP e no art. 217-A do CP são altas – mínimo de 6 anos, no caso do caput do 213, até 30 anos (quando houver resultado morte, no caso do art. 213, §2º e do art. 217-A, §4º). O problema, no caso dos crimes de estupro no Brasil, não são as penas baixas.

As penas mínimas foram aumentadas, as condutas se tornaram mais complexas. Porém, qual foi o impacto desta legislação em relação à conduta de homens (o crime de estupro é praticado predominantemente por homens no Brasil)?

Segundo o próprio Senado Federal, quando noticiou a aprovação do PLS 618/2015, de acordo com uma pesquisa realizada, no ano passado, pelo Datafolha, 90% das mulheres entre 16 e 24 anos afirmam ter medo de sofrer violência sexual. E segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2014, o Brasil tinha um caso de estupro notificado a cada 11 minutos: foram 47.646 estupros registrados no Brasil em 2015. Em média, apenas 35% dos casos são representados ou notificados à polícia, e, portanto, 65% dos crimes sexuais no Brasil permanecem sem investigação.


O Direito Penal possui respostas muito restritas: em primeiro lugar, sua natureza não permite a solução do conflito. O Direito Penal nunca prometeu isso. O Direito Penal concentra as suas atenções no autor ou na autora do crime, enquanto que o Processo Penal fornece meios /meios de prova que, numa (re)construção da narrativa, o réu possa ser absolvido ou condenado, e que todos os seus direitos fundamentais seja, respeitados. Quanto à vítima, esta só é necessária para o início da investigação de determinados crimes – como é o caso do art. 213 do Código Penal – estupro de pessoas maiores de 18 anos e não consideradas vulneráveis -, pois, nesse caso, a ação penal só é processada mediante representação da vítima. Após a representação, a vítima pode acompanhar o caso, se assim quiser, e poderá ser ouvida, se o juiz quiser, na produção da prova processual chamada “declarações do ofendido”. Em casos de crimes contra a dignidade sexual, o Superior Tribunal de Justiça possui posicionamento unânime, desde 2009, no sentido de que a palavra da vítima possui alto valor probatório nas investigações de crimes de estupro – por todos, cito recente Habeas Corpus julgado pelo Ministro Ribeiro Dantas, na 5ª Turma do STJ (HC 290.361/SP, DJE 26/04/2016).

Portanto, as estratégias para se pensar em formas de evitar a prática do crime de estupro no Brasil não passam, atualmente, pela alteração ao Código Penal, e sim de ajustes às formas de visibilização destes crimes e de políticas de segurança pública que reforcem a ocupação do espaço público por mulheres, além de políticas públicas de empoderamento de mulheres. Segundo o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2015, 90,2% das mulheres e 73,7% dos jovens entre 16 e 24 anos têm medo de sofrer violência sexual.


Recentemente, defendi minha tese de Doutorado na Universidade de Brasília, defendendo a criação de um Estudo de Impacto Legislativo para que, antes da aprovação de qualquer norma penal ou processual penal que implique na criação de novos tipos penais ou em alterações processuais significativas, todas as pessoas e as entidades interessadas possam ser ouvidas e trazer suas contribuições ao debate. Dentre as perguntas formuladas nesse meu estudo, apresento, aqui, algumas:



1.      O que é o problema?
2.      O assunto do problema é pertinente ao Direito Penal?
3.      O problema deve promover a alteração do Código Penal ou de alguma outra lei penal específica?
4.      A proposição afeta os princípios do direito penal?
5.      Quais são os objetivos da proposição legislativa?
6.      Quais são as opções para alcançar os objetivos da proposição legislativa?
7.      A proposição legislativa foi elaborada seguindo critérios objetivos de uma determinada política criminal? Pode-se identificar a política criminal orientadora da proposta?
8.      O objeto da proposição legislativa será avaliado? Como? Por quem?
9.      As alterações propostas foram baseadas em dados? Em caso positivo, citá-los.
10.  As alterações propostas provocarão efeitos na estrutura do sistema de justiça criminal ou no sistema penitenciário brasileiro? Em caso positivo, quais?
11.  As partes interessadas/afetadas foram ouvidas no curso da discussão das propostas legislativas? Quais foram as suas contribuições para a análise da proposição?


Nesse sentido, para que o Senado possa contribuir efetivamente para a mudança de cenário das estatísticas aqui apresentadas – e, principalmente, para evitar a prática de novos crimes contra a dignidade sexual -, a resposta passa mais pela análise e pelo monitoramento dos dados, no sentido de promover as políticas públicas adequadas para o empoderamento das mulheres, do que pela alteração da legislação penal. O Observatório da Mulher contra a Violência, instalado em março no Senado Federal, me parece um locus bastante adequado para o desenvolvimento de reflexões no sentido do aprimoramento da investigação criminal dos casos de estupro que chegam ao conhecimento do sistema de justiça criminal e de políticas públicas voltadas à prevenção destes crimes, focadas, principalmente, no empoderamento de mulheres.


Fico à disposição de todas e de todos para sanar dúvidas e prestar maiores esclarecimentos. Muito obrigada.





quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Palestra - O princípio da insignificância no novo Código Penal


 

Palestra – Princípio da insignificância no novo Código Penal
Data: 08/11/2012, das 10h às 12h
Local: Auditório do Bloco 3 do UniCEUB

 

Programação:

10h – 10h15 – Credenciamento (Entrega da pesquisa a ser discutida)
10h15 – 10h45 – Abertura – Carolina Costa Ferreira (UniCEUB) e Marivaldo de Castro Pereira (Secretário de Assuntos Legislativos – Ministério da Justiça)
10h45 – 11h15 – Apresentação de pesquisa sobre a aplicação do princípio da insignificância (FD – USP) – Ana Carolina Carlos de Oliveira (Pesquisadora da Faculdade de Direito da USP)
11h15 – 12h – Críticas à normatização do princípio da insignificância no PLS nº 236/2012 e análise do trâmite legislativo – Ela Wiecko Volkmer de Castilho (Professora de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia da UnB)

 

Não haverá inscrição prévia (participação sujeita à existência de vagas, de acordo com a capacidade do auditório).

Maiores informações no NEAC/UniCEUB - Tel: (61) 3966-1464.


 

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Ser professor, professora...


No dia dxs professorxs, falar sobre a atividade docente é um clichê inevitável. É importante refletir sobre o papel da educação em nossa sociedade, e me sinto mais à vontade para falar sobre a educação superior, meu “esporte de combate” atual.

Ser professor é ser complexo. No mínimo, é carregar algumas preocupações relacionadas ao término do conteúdo, ao nível das provas, às respostas dos alunos em sala de aula. Na minha opinião, a atividade docente depende de aprofundamento na teoria, estudando sempre, sem nunca se esquecer da prática de nosso sistema de justiça (criminal, no meu universo) e das dificuldades de inserção ou de compreensão de uma corrente-processualística-europeia-rococó no Brasil. É, principalmente, preocupar-se com a utilidade de determinado conhecimento para a vida do aluno, cidadão, estudante de Direito, futuro membro deste campo jurídico. Utilidade não no sentido utilitarista da coisa, mas sim em dar sentido àquele conceito, àquela teoria, fazer com que a coisa toda seja minimamente coerente. Não é fácil.

Ser professor é trabalhar MUITO. Elaborações e correções de provas e de exercícios, monografias, reuniões pedagógicas, palestras e leituras demandam muito tempo. Além disso, a capacidade de reflexão (dx professor e dxs alunxs) precisa de um certo tempo de respiração, nem sempre possível.

Exatamente pela falta de tempo para uma maior reflexão (que deveria acontecer, talvez, levando os cachorros para passear ou tomando um café demorado em algum bistrô), ser professor é viver inquieto. É “pensar alto”, refletir sobre problemas, tentando ora resolvê-los, ora diagnosticá-los. Ser professor é ser crítico – do sistema processual, da lei, da sociedade, do mundo. Mas também é fazer parte dele, levando informações aos alunos. E é aí que o professor tem a maior responsabilidade possível: indicar fontes de informação, torná-las acessíveis para que os alunos sejam sujeitos pensantes, formadores de opinião.

Sempre digo que estudantes de Direito que não têm opinião sobre determinados assuntos ainda não se descobriram estudantes de Direito. O que trato por “opinião” é o desenvolvimento de um argumento – que pode ser originado de questões morais, religiosas, político-partidárias, qualquer coisa –, mas que deve guardar coerência. É importante que o estudante saiba disto.

Ser professor é, por fim, ser estudante sempre. É manter uma relação direta com os alunos, sem autoritarismo infundado. É aprender sempre – com a realidade dos alunos, com novos argumentos e teorias, com as pesquisas e trabalhos desenvolvidos. Ser professor é estar inserido neste círculo tão importante que é a sociedade brasileira, é se posicionar, é defender a liberdade de fala, de escrita, de pensamento. 

Ser professor é ser livre.


*Este post é uma pequena homenagem a todos os professores que marcaram a minha vida. Nominalmente, lembro-me de Benildes Bizinotto Catanant, José Maria Ferreira Madureira, Silvana Elias, Clovis de Carvalho Júnior, Maria Regina Pagetti-Moran, Paulo César Corrêa Borges, Cristiano Paixão e Ela Wiecko Volkmer de Castilho, mas há tantos outros que foram e ainda são importantes ao meu constante processo de aprendizado. Não posso deixar de mencionar minha grande professora primária, querida, carinhosa, paciente, que me ajudou tanto na primeira infância e continua ouvindo meus desabafos sobre a docência: minha mãe, Ivonete Maria Costa Ferreira, professora mais do que vocacionada. Obrigada a me ajudar a seguir sua profissão.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Dia 28 de setembro!

Hoje é o dia de luta pela descriminalização do aborto na América Latina e no Caribe. A foto abaixo resume o que, na minha opinião, deve ser feito quanto ao tema: educação sexual para decidir, contraceptivos para não abortar, aborto legal para não morrer. É isso.


segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Anotações sobre o Seminário Crítico da Reforma Penal (Parte 1)


Após a realização do Seminário Crítico da Reforma Penal, sob a coordenação científica do Prof. Dr. Juarez Tavares, tive que tirar o blog da inércia. Como o Marcelo Semer, vou trazer minhas anotações e percepções sobre o Projeto de Código Penal numa sequência de posts, que abordarão os pontos mais incômodos do “Projeto Sarney-Dipp”, assim chamado durante o Seminário pelo Prof. Salo de Carvalho.

*Antes de ler os posts, é importante abrir e ler o Projeto de Código Penal, tal como foi proposto pela Comissão do Senado.

Vou dividir as análises a partir das mesas às quais assisti; neste primeiro post, trago um resumo das duas primeiras mesas da manhã de 12 de setembro, que reuniu os Professores Tiago Joffily, Vera Regina Pereira de Andrade, Alexandre Morais da Rosa e Alcides da Fonseca Neto.

É importante dizer que o seminário todo será degravado e publicado posteriormente pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Assim, estas anotações servem apenas para matar um pouquinho da curiosidade de todos sobre os debates de altíssima qualidade realizados durante o seminário.

O primeiro a falar, na manhã de 12 de setembro, foi o Promotor de Justiça do Rio de Janeiro Tiago Joffily, autor do livro “Direito e compaixão”, editado pela Revan, abordou “o princípio da lesividade no novo CP”. Em primeiro lugar, mencionou que alguns aspectos denominados por alguns como avanços são, em sua visão, “falsos avanços” ou “retrocessos inrustidos”, pois, se são limitadores de poder punitivo, são arbitrários na prática, e estão incorporados ao Projeto de Código Penal como “recuo estratégico” para a preservação do punitivismo “na medida do possível”.

Mencionou ainda que o art. 14, caput do Projeto de Código Penal é uma tentativa de positivação do princípio da lesividade, e criticou muito o uso da potencialidade para a interpretação de um fato, o que demonstraria a intenção simbolista do projeto:

O fato criminoso
Art. 14. A realização do fato criminoso exige ação ou omissão, dolosa ou culposa, que produza ofensa, potencial ou efetiva, a determinado bem jurídico.
Parágrafo único. O resultado exigido somente é imputável a quem lhe der causa e se decorrer da criação ou incremento de risco tipicamente relevante, dentro do alcance do tipo.

Há, na redação proposta pela Comissão, uma tentativa de inserção de um conceito analítico de crime que sempre foi minoritário na doutrina. Não haveria qualquer problema nesta tentativa se ela fosse acompanhada de sólida base teórica (o que não ocorre) e se não houvesse incoerência com outros dispositivos, como é o caso do art. 1º, parágrafo único, c/c art. 14, em contraposição à redação do art. 28 (princípio da insignificância).

O artigo 1º do Projeto de Código Penal define que “não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”. Nada de novo. É preocupante, porém, seu parágrafo único: “não há pena sem culpabilidade”. Para o Projeto de Código Penal, a culpabilidade é pressuposto para a aplicação da pena.

O Professor conclui, dizendo que a falta de traquejo da Comissão para tratar de alguns conceitos é produto das reflexões do Direito Penal atual, que não sabe mais seus conceitos importantes, como bem jurídico, culpabilidade, perigo, dentre outros.

Foto: Universidade sem Muros - universidadesemmuros.blogspot.com.br
A segunda fala coube à Profa. Dra. Vera Regina Pereira de Andrade, uma das maiores referências da Criminologia Crítica no Brasil. A Professora abordou os aspectos criminológicos da reforma penal. Suas palavras foram emocionantes, pois, desde o início, apontou o seu lugar de fala: a Criminologia com base no paradigma do controle social, denominada criticismo criminológico, que possui 50 anos de análises acumuladas sobre o funcionamento do sistema penal. Todas estas conclusões da Criminologia, segundo a Professora, não podem mais ser ignoradas, sob pena de formularmos discursos e ações de grande atraso epistemológico e político.

Vera Andrade faz uma viagem, mencionando os pensamentos criminológicos, desde seu início até o alcance de uma “maturidade” na Criminologia Crítica, que representa uma grande crítica ao Positivismo. A Criminologia Crítica expõe um discurso de deslegitimação dos sistemas punitivos, com apoio em uma premissa básica: a contradição entre as funções declaradas do sistema penal (promessas não cumpridas) e as funções realmente cumpridas, mas que o sistema não as declara. A primeira conclusão da Criminologia, na voz da Profa. Vera Andrade, chega à eficácia invertida dos sistemas penais.

O sistema penal, neste contexto, é estruturalmente incapaz de cumprir suas funções historicamente declaradas: proteger bens jurídicos, cumprir prevenção geral e especial e as funções ressocializadoras da pena. Para a Criminologia Crítica, a função real do sistema penal é a construção social da criminalidade e do criminoso. Tal construção é seletiva, desigual e violenta, de base classista, racista e sexista.

Para Vera Andrade, “o sistema penal é um instrumento de dominação de classe e de reprodução de marginalidade social. Há a reprodução dos ‘ismos’: capitalismo, racismo, patriarcado, classismo”.
“Não há quem trabalhe no sistema que não seja afetado. Todos os membros do Sistema de Justiça Criminal deveriam ter direito à terapia, por lidar diariamente com tanta dor.”

A Professora Vera é contundente: “Não aceitamos esta reforma. Não há como um penalista criminologicamente crítico receber este ‘tanque simbólico de guerra interna’ que é o Projeto de Código Penal sem sentir uma enorme sensação de derrota, de luto. Por que estou enlutada como criminóloga, cidadã, mãe, pessoa da República Brasileira? Vou percorrer os objetivos declarados da reforma e contrastá-los com a realidade do sistema penal.”

E a Professora Vera continua abordando as iniciativas da Comissão de Reforma do Código Penal, sob o ponto de vista da Criminologia Crítica: “ao silenciar sobre os fins da pena e demonstrar que a intenção de seus redatores era construir um sistema que dê conta da segurança jurídica, forma-se um ‘modelo Napoleônico’ do Direito”. Para a Professora, este é o primeiro Imperador da reforma; além disso, pretende-se sistematizar as funções do Direito Penal, pois a falta de legitimidade do sistema penal, segundo a Comissão, se concentra na “colcha de retalhos” que se transformou a nossa legislação penal.
Vera Andrade traduz em miúdos: “Esta reforma representa o sucesso do Simbolismo. A prisão é um sucesso histórico, apesar de toda a sua deslegitimação. Se chegamos até aqui, é porque temos um pacto de continuidade, sustentando toda esta reforma penal.”

Para a Professora, há déficits na reforma do Código Penal, que podem ser assim divididos:
·    
- -  1º déficit: empírico – a reforma não se coaduna com o sistema prisional (não há compromisso com a redução da população carcerária. Muito pelo contrário, as alterações previstas podem alcançar um aumento vertiginoso no número de pessoas presas no Brasil).
· 2º déficit: teórico – não há qualquer compromisso com uma teoria crítica e criminológica.
·3º déficit: dialógico – com o próprio poder que pretende punir mais. Ao mesmo tempo em que se desenvolve no Brasil uma Comissão dita “plural” para alterar o Código Penal, o Ministério da Justiça monta uma rede de políticas descarcerizadoras –representada, por exemplo, pela Central de Penas e Medidas Alternativas –, além de realizar a Conferência Nacional de Segurança Pública, questionando os paradigmas de segurança pública. A Comissão não dialogou com nenhum destes trabalhos institucionais de busca de solução de conflitos. Também não há diálogo com o CNJ, que realiza os mutirões carcerários; não há diálogo com nenhuma destas instâncias, que também são governamentais.
·   4º déficit – Déficit com a CPI do Sistema Carcerário, do próprio Poder Legislativo – não há qualquer menção à realidade identificada pela CPI.

O paradoxo destes déficits: a Comissão foi nomeada, na realidade, para produzir mais penas, sem diálogo com a teoria ou com as penas.

A Professora Vera alerta: “Esta reforma não é feita para os nossos filhos, mas para os filhos da rua. Somos os gestores desta reforma, confortavelmente protegidos (em salas de aula e gabinetes), enquanto os humildes sofrerão. Somos uma elite que possui uma grande responsabilidade. Só consigo ver tragédias no fim do túnel. Qual é a potência da reforma? É a potência genocida, que trata o ser humano como objeto de mercado. Ainda é um tiro no pé. Professores universitários são a matriz ideológica do sistema de justiça. Nossa palavra talvez seja das mais importantes. Além de potencializar a dor do outro, esta reforma é um tiro no pé para nós, pois ela vai agudizar a crise do atual sistema de justiça.
Esta não é uma reforma republicana, mas imperial. O segundo imperador da Reforma é José Sarney, que preside uma Comissão que não ouve os demais. Os juristas parecem “bobos da corte” em volta de Sarney, que é uma das heranças mais fidedignas de nossa sociedade escravocrata.”

E termina sua fala mencionando a (infeliz) dedicatória feita, pessoalmente pelo relator da Comissão, aos meninos João Hélio e Ives Ota... em oposição, a Professora reage: “quero dedicar minha fala a todos os meninos anônimos que moram, morrem, sofrem em nossa sociedade. O sistema que temos é indigno!”

- O Seminário Crítico da Reforma Penal produziu uma carta, transformada em uma petição online, para que todos os que rejeitam esta proposta tão recrudescente possam se manifestar. Eu já a assinei, e você?