sábado, 9 de junho de 2012

A importância da Marcha das Vadias (ou sobre gênero, luta e amizades, não necessariamente nesta ordem...)



“CHARLOTTE
O que aconteceria se uma mulher despertasse uma manhã transformada em homem? E se a família não fosse o campo de treinamento onde o menino aprende a mandar e a menina a obedecer? E se houvesse creches? E se o marido participasse da limpeza e da cozinha? E se a inocência se fizesse dignidade? E se a razão e a emoção andassem de braços dados? E se os pregadores e os jornais dissessem a verdade? E se ninguém fosse propriedade de ninguém?
Charlotte Gilman delira. A imprensa norte-americana a ataca, chamando-a de “mãe desnaturada”, e mais ferozmente a atacam os fantasmas que moram em sua alma e a mordem por dentro. São eles os temíveis inimigos que Charlotte contém, quem às vezes conseguem derrubá-la. Mas ela cai e se levanta, e torna a se lançar pelo caminho. Esta tenaz caminhadora viaja sem descanso pelos Estados Unidos e, por escrito e por falado vai anunciando, nos começos do século XX, um mundo ao contrário.” (GALEANO, Eduardo. Mulheres. Trad. Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 122)


Há um tempinho, uma grande amiga mandou uma mensagem inbox, no Facebook, para mim e outra amiga, perguntando “o que é essa Marcha das Vadias de que vocês tanto comentam”. Minha outra amiga encaminhou o link da Wikipédia sobre a Marcha, para que ela minimamente soubesse do que se trata. E a resposta dela foi: “nossa, é sério que a gente ainda precisa desse tipo de movimento? Estou chocada!”

Na hora, só suspirei. Na verdade, para mim, a Marcha das Vadias tem uma simbologia muito maior do que a sua própria luta: significa me incluir num movimento em que realmente acredito, especialmente por sua forma de construção: coletiva, horizontal, democrática, que toma corpo a cada ano. Na Marcha de 2012, em Brasília, tivemos cerca de 4 mil pessoas lutando por igualdade de gênero, pelo fim da violência contra a mulher, pela construção de uma sociedade inclusiva. E, sim, a gente PRECISA de movimentos como este. Na verdade, em tempo de neoconservadorismos, acho que nunca precisamos tanto de vozes nas ruas para defender direitos e garantias fundamentais.

Marcha das Vadias em Brasília (26/05/2012)
Foto do álbum da Marcha das Vadias DF
A defesa pela igualdade de gênero ganha contornos cada vez mais complexos: a ideia do senso comum é de que as mulheres “já ganharam igualdade de direitos”, pois votam tais como os homens, trabalham e estudam como os homens, têm liberdade para se separar de seus maridos e, hoje, temos até uma Presidenta do Brasil. Seria o melhor dos mundos, não?

Infelizmente, não. Mulheres ganharam o direito a voto, plenamente, em 1934, e até hoje não temos representatividade suficiente em cargos políticos ou em instrumentos de participação social.  Em relação à (des)igualdade de salários e de condições de trabalho, a luta ainda é muito grande: em recente estudo do IPEA, notam-se distinções de gênero no uso do tempo destinado ao trabalho doméstico por mulheres e homens. Os crescentes casos de violência contra a mulher fizeram com que o próprio Supremo Tribunal Federal alterasse a modalidade de ação penal cabível para o caso de lesões corporais praticadas no âmbito da violência doméstica e geram compromissos do Poder Executivo para a diminuição destas ocorrências.

É curioso como debates que envolvem gênero, lutas por reconhecimento, estratégias de mobilização às vezes despertam opiniões tão diversas; há quem entenda que já vivemos em uma sociedade “moderna demais”, e por isso as mulheres e os homens comprometidos com a igualdade de gênero devem criar outras formas de luta (como a advovacy feminista, a participação como amicus curiae em processos em trâmite no Supremo Tribunal Federal), que não a ocupação das ruas. Mas o sentimento de ocupá-la, de gritar pela igualdade, talvez tenha uma função muito maior de empoderamento do que de transformação social. Sair da posição de vítima silenciosa para a “vadia barulhenta”; tomar seu lugar no mundo, nas ruas, na sociedade. Muita gente pergunta: “vocês saíram da Marcha, voltaram para as suas casas, e quem apanha continua apanhando”. Sim, infelizmente, serão necessárias muitas e muitas marchas, lutas, conquistas legislativas e políticas públicas para a alteração dessa realidade. Seguimos lutando por um mundo ao contrário de verdade.